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Acórdão n.º 4/2025

Acórdão n.º 4/2025

Acórdão n.º 4/2025

Proferido nos autos de Recurso de Amparo Constitucional n.º 2/2025, em que é recorrente Nataniel Mendes da Veiga e entidade recorrida o Supremo Tribunal de Justiça.


Acórdão n.º 4/2025

Cópia:

Do acórdão proferido nos autos de Recurso de Amparo Constitucional n.º 2/2025, em que é recorrente Nataniel Mendes da Veiga e entidade recorrida o Supremo Tribunal de Justiça.

(Autos de Amparo N. 2/2025, Nataniel Mendes da Veiga v. STJ, aperfeiçoamento por obscuridade na indicação de condutas que pretende que o TC escrutine)

I. Relatório

1. O Senhor Nataniel Mendes da Veiga interpôs recurso de amparo, impugnando o Acórdão N. 191/2024, do Supremo Tribunal de Justiça, arrolando os argumentos que abaixo se resume da seguinte forma:

1.1. Quanto à admissibilidade do recurso:

1.1.1. Entende que por ter apresentado reclamação após ter sido notificado do Acórdão N. 191/2024, a qual conduziu ao Acórdão N. 235/2024, a ele comunicado no dia 13 de dezembro de 2024, o presente recurso de amparo teria sido impetrado dentro do prazo de 20 dias estabelecido na lei do processo;

1.1.2. Estariam esgotadas todas as vias de recurso ordinário tendo em conta que recorre de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça, última instância do poder judicial;

1.1.3. Seria também inquestionável a sua legitimidade pois que é o visado pela decisão ora posta em crise, assim como seria também pacífica a legitimidade do Supremo Tribunal de Justiça;

1.1.4. O ato, facto ou omissão que violou os seus direitos fundamentais consubstanciar-se-ia no facto de o STJ, através do Acórdão N. 191/2024, de 9 de dezembro, ter-lhe negado o direito à justiça, ao acesso à justiça, ao processo justo e equitativo, à liberdade sobre o corpo, à presunção de inocência, ao considerar:

1.1.4.1. “Ser justo e legal, a não homologação pelo Tribunal das desistências das queixas apresentadas pelos queixosos, ou, não ser obrigação/dever do juiz homologar na sentença as manifestações expressas de interesse em desistir do procedimento criminal apresentados pelos queixosos no interesse e a favor do arguido”;


1.1.4.2. “Ser justo e legal, a participação na nova decisão, do mesmo coletivo de juízes, que já tinha pronunciado p[ú]blica e expressamente o seu entendimento sobre o caso, numa decisão que, entretanto, foi anulada pelo Tribunal Constitucional”:

1.1.4.3. “Ser justo e legal, acontecer a última audiência de produção de prova no dia 26.07.2022 o juiz proceder a leitura da sentença, por meio de “apontamentos” no dia 08.08.2022, e proceder a confe[c]ção da sentença propriamente dita e o seu depósito, só no dia 15.10.2022, quando diga-se de passagem sequer já “retia” [seria retinha] memória do que se passou na audiência de produção de provas, pois, já se tinha decorrido 79 dias sobre o encerramento da produção de provas, e este comportamento não belisca o direito a justo processo legal, e ainda, não belisca a garantia de julgamento justo”;

1.1.4.4. “Ser justo e legal, o juiz proceder a leitura da sentença, por meio de “apontamentos” no dia 08.08.2022, e se proceder a confe[c]ção da sentença propriamente dita e o seu depósito 79 dias depois da produção da prova e 67 dias depois da alegada leitura, só no dia 15.10.2022, e na mesma “pôr” data anterior, ou seja, a da leitura”;

1.1.4.5. “Ser justo e legal e que não belisca o princípio da continuidade da audiência, um juiz ler a sentença por meio de “apontamentos” só para dar aparência de estar a cumprir o disposto art.º 356º, n.º 6[,] do CPP, e[,] consequentemente[,] evitar as consequências da sua violação, para só 67 dias depois confecionar a dita sentença, quando foi notificado, para os termos do art.º 20 do CPP, no âmbito de uma providência de habeas corpus, intentada pelo arguido, justamente com fundamento na inexistência da referida sentença”.

1.2. Sobre as razões de facto e de direito que fundamentam o seu pedido:

1.2.1. Começa por dizer que os Venerandos Juízes Conselheiros – Dra. Zaida Lima (Relatora), Dr. Benfeito Ramos e Dr. Simão Santos – estariam impedidos de proferir uma decisão sobre o seu recurso, tendo em conta a anulação da primeira decisão neste processo (Acórdão N. 179/2023, de 31 de julho), prolatada por este mesmo coletivo de juízes, e que foi anulada pelo Tribunal Constitucional, através do Acórdão 69/2024, de 13 de setembro.

1.2.2. Que, para obstar a decisão prolatada pelo Tribunal Constitucional em relação ao Acórdão 179/2023, esse coletivo de Juízes Conselheiros deveria ter aplicado as regras do artigo 470, número 2, do CPP.

1.3. Dando continuidade à sua exposição, alega ter sido acusado pela procuradoria da Comarca de Santa Catarina, submetido a julgamento e condenado.

1.3.1. Os crimes pelos quais foi acusado seriam: 19 crimes de burla qualificada; 2 crimes de agressão sexual, na sua forma tentada; 1 crime de agressão sexual na forma agravada; 1 crime de gravações de imagens; 2 crimes de coação; 2 crimes de ameaça; 26 crimes de falsificação ou alteração de documentos; e um crime de pornografia e vingança;

1.3.2. Tendo sido marcada a audiência de discussão e julgamento para os dias 18, 19 e 20 de julho de 2022, logo no primeiro dia, no início da audiência, vários dos queixosos teriam manifestado a sua vontade de desistir do procedimento criminal, o que teria ficado consignado em Acta;

1.3.3. Tendo ainda assim o Tribunal dado continuidade à audiência, no final, ao invés de homologar tais desistências ou proceder às diligências necessárias para a sua efetivação, decidiu condenar o recorrente relativamente a factos que tinham por base as queixas apresentadas pelos desistentes;

1.3.4. Inconformado com tal decisão, insurgiu-se contra a mesma, pedindo a revogação da sentença e o acolhimento das desistências manifestadas pelos ofendidos: Vânia Borges, Isaltina Tavares Maria de Brito, Lauridiana Borges, Edmilson Sanches, Odair de Brito, Cármen Tavares, Carlos da Veiga, Felisberto Moreira, Cintia Batalha e Elizandro Tavares;

1.3.5. Como o Tribunal da Relação de Sotavento não deu provimento ao seu recurso, recorreu para o STJ e da decisão deste Tribunal (Acórdão 179/2023) interpôs recurso de amparo para o Tribunal Constitucional, cuja decisão de anular a decisão recorrida foi prolatada através do Acórdão 69/2024, de 13 de setembro;

1.3.6. No entanto, através do Acórdão N. 191/2024, de 9 de dezembro, o STJ viria a prolatar nova decisão negando provimento ao mesmo alegando que de facto, os ofendidos referidos na peça, teriam manifestado inicialmente vontade de desistir do procedimento criminal, mas que por não ter havido acordo do arguido nesse sentido, que seria um pressuposto necessário para a eficácia da desistência, nem decisão homologatória, não se poderia considerar que teria havido desistência válida dos referidos queixosos. Assim sendo, decidiram os juízes da Secção Criminal do STJ negar provimento ao recurso e com os fundamentos consignados no corpo do acórdão confirmar a decisão recorrida;

1.3.7. No dia 12 de novembro de 2024, ainda dentro do prazo de 5 dias para reclamar e/ou pedir a reforma do acórdão teria juntado um documento com assinatura reconhecida onde indicava que aceitava as referidas desistências. Porém, ainda assim, o STJ teria mantido a sua decisão de condenação através do Acórdão N. 235/2024;

1.3.8. A seu ver, em respeito pela dignidade da pessoa humana, a liberdade sobre o corpo e ao processo justo e equitativo, o STJ tinha duas opções, já que teria prova inequívoca da vontade de desistência dos queixosos:

1.3.8.1. Por um lado, deveria chamar o arguido a se pronunciar sobre as ditas desistências, e, excecionalmente, julgar o facto;

1.3.8.2. Por outro, em respeito aos referidos princípios, em vez de impor o ónus sobre o requerente, como não se tratava de um processo urgente, já que não havia arguido preso, deveria mandar anular todo o processado até à data da dita desistência, em nome da justiça;

1.3.8.3. Deveria ainda ter interpretado a norma do artigo 106, número 2, do Código Penal (CP) e as referidas desistências em sentido mais favorável ao arguido, como se imporia por observância dos princípios do direito processual penal e penal.

1.3.9. No entanto, em vez de agir segundo o acima expresso, o STJ teria “segregado o segundo direito mais importante de um ser humano”, o que fundamentaria uma decisão do Tribunal Constitucional no sentido de mandar anular o Acórdão N. 191/2024, e, consequentemente, o Acórdão N. 235/2024, amparando os direitos fundamentais do requerente à dignidade da pessoa humana, à liberdade sobre o corpo e ao processo justo e equitativo.

1.4. Além disso, teria levado à consideração do STJ, sem que lograsse ser bem-sucedido, o facto da última audiência de produção de prova ter acontecido no dia 27 de julho de 2022.

1.4.1. Apesar de o juiz ter designado o dia 8 de agosto de 2022 para a leitura, o que teria ficado registado em acta, a sentença viria a ser verbalizada, e com recurso a apontamentos, deixando dúvidas se se estaria perante a leitura de uma verdadeira sentença;

1.4.2. Dúvidas que se acentuariam porque, após a leitura da sentença, teria ido várias vezes à secretaria do Tribunal para a ela poder aceder, sem que pudesse ver satisfeita a sua pretensão, pois que a mesma não teria sido depositada na secretaria, nesse espaço temporal.

1.5. E foi por esse motivo que decidiu interpor uma providência de habeas corpus.

1.5.1. Refere que, só então, após ter interposto o habeas corpus, invocando inexistência da sentença, viria o Tribunal a remeter-lhe a sentença para a sua caixa de correio;

1.5.2. Entretanto, o STJ considerou que a conduta apontada pelo recorrente para fundamentar a sua providência de habeas corpus seria uma mera irregularidade pois que não passaria de um depósito tardio da sentença;

1.5.3. Outro facto ocorrido, e que a seu ver teria violado o direito ao processo justo e equitativo, seria o facto de a sentença só ter sido depositada no dia 15 de outubro de 2022, 67 dias após a sua leitura, e ter-se feito constar da mesma, o dia 8 de agosto, o que vaticinaria uma falsidade e, consequentemente, uma nulidade;

1.5.4. Explica que no nosso sistema jurídico a regra vigente é a da continuidade da audiência de discussão e julgamento e que o seu não cumprimento é cominado com a perda de “eficácia” da prova anteriormente produzida, nos termos do artigo 356, número 6, do CPP. Questão que teria sido tratada no Acórdão N. 38/2022 do TRS, cujos fundamentos são transcritos para a sua peça;

1.5.5. Diz que os fundamentos apresentados no referido acórdão se aplicam na íntegra ao seu caso, na medida em que nos presentes autos ter-se-ia ultrapassado largamente os 30 dias, desde a última audiência de produção de prova e a prolação da sentença propriamente dita, já que o que considera uma leitura dos “apontamentos” não teria o condão de suspender tal prazo;

1.5.6. Que a tese do STJ de que se estaria em presença de mero depósito tardio da sentença abriria portas para situações em que o juiz poderia depositar a sentença quando bem entendesse. O que a seu ver não seria compatível com os fundamentos da justiça e de um processo justo e equitativo.

1.6. Pede por isso, como amparo, que:

1.6.1. Sejam anulados o Acórdão N. 191/2024 e o Acórdão N. 235/2024 do STJ;

1.6.2. Seja determinada a remessa do processo ao STJ para nova decisão, respeitando o princípio da imparcialidade e o disposto nos artigos 49, 50 e 470, número 2, do CPP, e, consequentemente, seja reparado o direito a um processo justo e equitativo;

1.6.3. A nova decisão absorva ainda a aceitação de desistência subscrita pelo arguido, ou, caso não seja esse o entendimento, que seja determinado a remessa do processo ao juiz da 1ª instância para praticar o ato devido, em vez da postergação do direito fundamental do arguido à liberdade, reparando, o direito à justiça, a um processo justo e equitativo e à liberdade sobre o corpo;

1.6.4. Seja considerado que a aposição por um juiz de uma data na sentença depositada 67 dias sobre a alegada leitura da mesma, viola o direito ao processo justo e equitativo;

1.6.5. Seja considerado que ultrapassar o prazo estabelecido no artigo 356, número 6, do CPP em mais do dobro da imposição legal é irrazoável, reparando assim o direito ao processo justo e equitativo;

1.6.6. Seja considerado incompatível com o direito fundamental a um processo justo e equitativo, uma decisão decorrente de uma situação em que a audiência de produção de prova acontece no dia 26 de julho de 2022 e o depósito da dita sentença só ocorre 67 dias depois.

1.7. Diz juntar procuração, duplicados legais e 11 documentos.

2. Cumprindo o estabelecido no artigo 12 da Lei N. 109/IV/94 de 24 de outubro, foram os autos com vista ao Ministério Público para a emissão de parecer sobre a admissibilidade do recurso, tendo-o feito S. Excia. o Senhor Procurador-Geral da República, que articulou os seguintes argumentos:

2.1. O recorrente estaria provido de legitimidade.

2.2. O recurso seria tempestivo.

2.3. A decisão impugnada foi proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais.

2.4. O requerimento cumpriria com as disposições dos artigos 7º e 8º da Lei do Amparo.

2.5. Os direitos fundamentais cuja violação o requerente alega e imputa ao acórdão recorrido constituiriam direitos, liberdades e garantias fundamentais reconhecidos na Constituição como suscetíveis de amparo.

2.6. Não lhe constaria que o Tribunal Constitucional tenha rejeitado, por decisão transitada em julgado, um recurso com objeto substancialmente igual.

2.7. Afigurar-se-lhe-ia, por isso, que estariam preenchidos os pressupostos para a admissão do presente recurso de amparo constitucional.

3. Marcada a sessão de julgamento para o dia 13 de fevereiro de 2025, nessa data se realizou com a participação dos Venerandos Juízes-Conselheiros e do Senhor Secretário do TC, dela decorrendo a decisão que se segue acompanhada dos fundamentos articulados infra.

II. Fundamentação

1. Do ponto de vista constitucional, o recurso de amparo é concebido como um direito fundamental de “requerer ao Tribunal (…) a tutela de (…) direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente reconhecidos”, e também como um meio “de tutela de direitos, liberdades e garantias”, consagrando-se a sua dupla-natureza subjetiva e objetiva.

1.1. Direito este que é delimitado materialmente, na medida em que destinado à proteção direta de apenas uma das três categorias de direitos fundamentais previstas pela Lei Fundamental. Seriam os denominados direitos, liberdades e garantias, tanto os individuais, como os de participação política e de exercício da cidadania e, arguivelmente, os dos trabalhadores. É verdade que se estende para recobrir os direitos análogos a direitos liberdades e garantias ou que portem caraterísticas específicas com dimensões individuais e civis como, respetivamente, os direitos de proteção judiciária (Acórdão 6/2017, de 21 de abril, Maria de Lurdes v. STJ, sobre pedido de desistência, Rel: JC Pina Delgado, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 42, 21 de julho de 2017, pp. 898-903, 5; Acórdão 9/2017, de 8 de junho, Martiniano Oliveira v. STJ, Rel: JCP Pinto Semedo, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 42, 21 de julho de 2017, pp. 925-929, e); Acórdão 13/2017, de 20 de julho, Arlindo Teixeira v. STJ, Rel: JCP Pinto Semedo, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 47, 8 de agosto de 2017, pp. 1024-1029, e); Acórdão 24/2017, de 9 de novembro, Arlindo Teixeira v. STJ, Rel: JCP Pinto Semedo, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 78, 22 de dezembro de 2017, pp. 1692-1698, e); Acórdão 12/2018, de 7 de junho, CIMA v. STJ, Rel: JC Aristides R. Lima, Decisão de admissibilidade, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 49, 20 de julho de 2018, b; Acórdão 16/2018, de 28 de julho, Luigi Zirpoli v. TJCP, Rel: JCP Pinto Semedo, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 49, 20 de julho de 2018, pp. 1298-1302, e); Acórdão 17/2018, de 26 de julho, Amândio Vicente v. TRS, Rel: JCP Pinto Semedo, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 51, 3 de agosto de 2018, pp. 1328-1333, e); Acórdão 22/2018, de 11 de outubro, Martiniano v. STJ, sobre o direito de acesso aos tribunais, Rel: JC José Pina Delgado, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 76, 22 de dezembro de 2018, pp. 1824-1835, 2; Acórdão 3/2019, de 24 de janeiro, Ramiro Rodrigues v. TRB, Rel: JCP Pinto Semedo, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 28, 13 de março de 2019, pp. 480-486, e);  Acórdão 36/2022, de 12 de agosto, Ramiro Oliveira Rodrigues v. TRB, sobre violação do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva por não-admissão de recurso designado pelo recorrente amparo ordinário por tribunal judicial, Rel: JC Pina Delgado, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 2, 5 de janeiro de 2023, p. 36-42, 2.1) e o direito à propriedade privada (Acórdão 30/2019, de 30 de agosto, Atlantic Global Asset Management v. PGR, sobre violação do direito à propriedade privada, da garantia de juiz, da iniciativa privada e dos direitos à defesa, ao contraditório e de acesso às provas da acusação, Rel: JC Pina Delgado, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 110, 29 de outubro de 2019, pp. 1766-1789); ou ainda para situações que envolvam camadas de proteção essenciais que remetam a certos direitos, liberdades e garantias como a vida ou a integridade pessoal. Porém, fora desses casos, com a tendencial não-inclusão dos direitos económicos, sociais e culturais e dos direitos de grupos vulneráveis que não portem caraterísticas de direitos, liberdades e garantias, e também de princípios constitucionais objetivos, como, em diversos momentos, este Tribunal já decidiu (Acórdão 11/2017, de 22 de junho, Maria de Lurdes v. STJ, sobre violação do direito de constituir família por não reconhecimento de união de facto, Rel: JC Pina Delgado, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 42, 21 de julho, pp. 933-950 e na Coletânea de Decisões do Tribunal Constitucional de Cabo Verde, Vol. III, Praia, INCV, 2018 (2017), pp. 423-477, 20.1; Acórdão 29/2017, de 5 de dezembro, Ovídio de Pina v. STJ, Rel: JC Aristides R. Lima, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 6, 1 de fevereiro de 2018, pp. 75-93, 20.1; Acórdão 06/2018, de 22 de março, Adilson Danielson v. STJ, Rel: JC Pina Delgado, Boletim Oficial, I Série, N. 21, de 11 de abril de 2018, pp. 495-505, 2; Acórdão 27/2018, de 20 de dezembro, Judy Ike Hills v. STJ, sobre violação de garantia de inviolabilidade de domicílio, de correspondência e de telecomunicações e de garantia da presunção da inocência na sua dimensão de in dubio pro reo, Rel: JC Pina Delgado, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 11, 31 de janeiro de 2019, pp. 146-178, 2.1.1). Por conseguinte, trata-se de um recurso especialmente desenhado para proteger uma categoria especial de direitos que goza de regime de tutela mais intenso: os direitos, liberdades e garantias.

1.2. E que fica processualmente condicionado ao esgotamento das vias ordinárias de recurso, opção da qual resulta um figurino constitucional que produz diversos efeitos.


1.2.1. Desde logo, a conceção de que todos os tribunais cabo-verdianos são tribunais de proteção de direitos, nos termos da sua respetiva jurisdição, cabendo efetivar essa tutela através dos processos ordinários desenhados pela lei, dos processos especiais previstos pela Constituição como o Habeas Corpus ou o recurso contencioso administrativo, ou daqueles que venham a ser definidos pelo legislador, nos termos do artigo 22, parágrafo sexto, segundo o qual “[p]ara a defesa dos direitos, liberdades e garantias individuais, a lei estabelece procedimentos judiciais céleres e prioritários que assegurem a tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses mesmos direitos, liberdades e garantias” (Acórdão nº 36/2022, de 12 de agosto, Ramiro Oliveira Rodrigues v. TRB, sobre violação do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva por não-admissão de recurso designado pelo recorrente de amparo ordinário por tribunal judicial, Rel: JC Pina Delgado, 5.1.3).

1.2.2. E, em consequência, a subsidiariedade do recurso de amparo, recurso constitucional de natureza especial, ao qual só se pode lançar mão, depois de se explorar os mecanismos que correm perante os tribunais ordinários para que estes possam conhecer e garantir a tutela desses mesmos direitos.

1.3. E caraterizado pelo seu informalismo, urgência e sumariedade, conforme decorre da alínea b) do artigo 20, segundo a qual ele “pode ser requerido em simples petição, tem caráter urgente e o seu processamento deve ser baseado no princípio da sumariedade”.

1.4. Por conseguinte, está-se perante um direito fundamental e um recurso constitucional desenhado especialmente para a proteção de direitos, liberdades e garantias, que pode ser utilizado subsidiariamente quando os meios ordinários de tutela de direitos que correm os seus trâmites perante os tribunais judiciais ou outros, a existirem, falham. Tais caraterísticas impõem que a própria lei de processo constitucional que desenvolve os procedimentos atinentes ao recurso de amparo seja interpretada como uma lei restritiva de direito cujo figurino básico se deve manter dentro dos confins dos números 4 e 5 do artigo 17 da Constituição, ainda que parte do regime possa ser legitimamente fixado pelo legislador em razão da remissão à lei (“nos termos da lei”), desde que não se atinja de modo ilegítimo as caraterísticas essenciais do instituto impostas pelo próprio dispositivo constitucional (“e com observância [obrigatória, diga-se] do disposto nas alíneas seguintes (…)”.    

2. As exigências da peça de recurso de amparo são as consagradas nos artigos 7º e 8º da Lei do Amparo e do Habeas Data, os quais impõem, respetivamente, que: 

2.1. A petição seja:

2.1.1. Interposta através de simples requerimento, com indicação expressa de que o recurso tem a natureza de amparo;

2.1.2. Devidamente fundamentada; e

2.1.3. Entregue na Secretaria do Tribunal Constitucional.

2.2. Quanto ao que a lei designa de “fundamentação do recurso”, exige-se que o recorrente, através da peça,

2.2.1. Identifique a entidade, o funcionário ou o agente autor do ato ou da omissão, bem como os interessados a que o provimento do recurso possa diretamente beneficiar ou prejudicar, havendo-os;

2.2.2. Indique com precisão “o ato, facto ou a omissão” que, na sua opinião, violou os seus direitos amparáveis;

2.2.3. Indique com clareza quais deles terão sido vulnerados, “com a expressa menção das normas ou princípios jurídico-constitucionais que entende terem sido violados”;

2.2.4. Exponha resumidamente as razões de facto que fundamentam o pedido, bem como “formul[e] conclusões, nas quais resumirá, por artigos, os fundamentos de facto e de direito que justificam a petição”;

2.2.5. Esta deverá “terminar com o pedido de amparo constitucional no qual se indicará o amparo que o recorrente entende dever ser-lhe concedido para preservar ou restabelecer os direitos, liberdades ou garantias violados”, devendo vir acompanhada dos “documentos que julgar pertinentes e necessários para a procedência do pedido”. 

2.3. O objeto dessas disposições é determinar o modo de interposição e definir a estrutura da peça processual, de tal sorte que, de forma célere e simplificada, se permita ao Tribunal Constitucional identificar os elementos constitutivos da súplica para que possa decidir sobre a sua admissibilidade, sobre eventuais medidas provisórias aplicáveis e, subsequentemente, sobre o seu mérito.

2.3.1. De um lado, através da facilitação do acesso a esses elementos que decorreriam do modo de organização da peça e da entrega direta no Tribunal Constitucional;

2.3.2. Do outro, pelo facto de se impor um determinado conteúdo à mesma, na medida em que, do ponto de vista do número 1 do artigo 8º, primeiro, remete-se, através das alíneas a) e b); para a identificação das condutas lesivas (“ato, facto ou a omissão”) e para o órgão do poder público ao qual podem ser imputadas (“a entidade, o funcionário ou o agente autor do ato ou da omissão”); segundo, por meio da alínea c), aos direitos, liberdades e garantias vulnerados por aquelas (“indicar com clareza os direitos, liberdades e garantias fundamentais”) e às disposições onde estariam alojados ou os princípios de onde podem ser inferidos (“com a expressa menção das normas ou princípios-constitucionais que entendem terem sido violados”); terceiro, nos termos do número 2 da mesma disposição, à explicitação do amparo que se pretende para se remediar a eventual lesão (“a petição terminará com o pedido de amparo constitucional no qual se indicará o amparo que o recorrente entende dever ser-lhe concedido para preservar ou restabelecer os direitos, liberdades e garantias fundamentais violados”). A argamassa que ligaria esses três elementos decorreria dos fundamentos de facto e de direito que justificam a petição, como também se impõe apresentar, conforme o disposto nas alíneas d) e e) do parágrafo primeiro da primeira disposição; 

2.3.3. A regra é que, do ponto de vista da articulação da petição de amparo, deve haver o estabelecimento de uma ligação lógica entre cada conduta impugnada, as posições jurídicas decorrentes do(s) direito(s) que ela vulnera e o amparo adequado para a remediar através da fundamentação. O que se tem verificado até agora é que na maior parte dos casos, isso é muito deficientemente articulado, lançando-se para a peça de recurso, sem grande precisão e racionalização, uma pluralidade de condutas a que globalmente se imputam violações de um conjunto diversificado de direitos, e remetendo-se para amparos genéricos ou impossíveis. O Tribunal Constitucional desde o Acórdão nº 10/2017, de 8 de junho, Adilson Danielson v. STJ, Rel: JCP Pinto Semedo, publicado no Boletim Oficial, I Série, N. 42, 21 de julho de 2017, pp. 929-933, b), tem tolerado a interposição de vários amparos que não cumprem essas exigências qualitativas, considerando que a disposição deve ser lida sempre de forma compatível ao direito constitucional ao amparo, no sentido de que “mais importante que o rigor formal é a inteligibilidade do que se expõe e se requer”. Mas, a duras penas, considerando a grande dificuldade que se tem para se compreender o que se impugna, o que se pede e os fundamentos que suportam as petições. A Corte Constitucional continuará – transitoriamente – aberta a privilegiar as admissibilidades, suprindo, ela própria, eventuais deficiências das peças, mas, depois de vários anos de prática do amparo em Cabo Verde, é preciso entrar numa nova fase mais exigente, sustentada numa melhor qualificação;

2.3.4. Na situação vertente, pode-se dizer que, no geral, o recorrente, além de ter apresentado a sua peça na secretaria deste Tribunal, indicando expressamente que se trata de um recurso de amparo, incluiu uma exposição das razões de facto que a fundamentam, tendo, ainda, integrado um segmento conclusivo resumindo por artigos os fundamentos de facto e de direito que suportam os seus pedidos, cumprindo as imposições do artigo 8º da Lei do Amparo e do Habeas Data;

2.3.5. No entanto, apesar de dar a entender que o objeto do recurso seria o Acórdão N. 91/2024, do STJ, com a exceção do que expõe no ponto 5.1.2, não se consegue perceber qual(ais) a(s) exata(s) conduta(s) do STJ que pretende impugnar. Na medida em que a forma como construiu as fórmulas impugnatórias, apesar do esforço feito, que é patente, muitas delas parecem configurar questões colocadas a esta Corte em relação a atos e omissões do Tribunal de 1ª instância, ou interpretações do próprio recorrente sobre os efeitos de condutas não especificadas sobre os seus


direitos, não se conseguindo discernir claramente o modo específico como o ato judicial impugnado materializa a prática das mesmas.

2.4. Sendo assim, torna-se imperioso ordenar a notificação do recorrente para, no prazo estabelecido pela lei, indicar com a máxima precisão qual(is) a(s) conduta(s) praticadas pelo órgão judicial recorrido através do ato impugnado que pretende que este Tribunal sindique.

III. Decisão

Pelo exposto, nos termos do artigo 17 da Lei do Amparo e do Habeas Data, os Juízes-Conselheiros do Tribunal Constitucional reunidos em plenário decidem ordenar a notificação do recorrente para, sem a necessidade de reproduzir toda a peça, aperfeiçoar o seu recurso, clarificando a(s) conduta(s) que pretende que o Tribunal escrutine.

Registe, notifique e publique.

Praia, 17 de fevereiro de 2025

José Pina Delgado (Relator)

Aristides R. Lima

João Pinto Semedo

Está conforme

Secretaria Judicial do Tribunal Constitucional, aos 17 de fevereiro de 2025. — O Secretário, João Borges.